segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Fragmentos infantis

Ganhei uma cadeirinha de madeira do dono de uma loja de imóveis de Vila Isabel. Ele gostava muito de mim, enrolava seu dedo em meus cachos, como a maioria naquele tempo.
Fechava um olho e tentava manter o outro aberto, na expectativa de surpreender meus brinquedos, quando eles tomassem coragem de conversar e andar pelo quarto.
Meu pai sentou na minha cadeirinha de madeira em meio a cozinha. A cadeirinha que ganhei do tio da loja. E cadeirinha porque ela era bem pequena mesmo. Ele estava chorando e minha mãe falava muito do que não entendia. Ele havia perdido o emprego e era pai aos 28 anos de uma filha com cinco. Pertubador até para mim que não entendia disso ainda, mas que nunca tinha visto o pai chorar daquela maneira.
Sempre por perto de toda conversa adulta. Meu pai gostava, nunca me escondeu, nem amenizou.
Fui em um lugar cheio de gente vestindo branco e um deles jogou ervas em mim uma vez, minha avó disse que fazia bem e devia fazer mesmo porque era cheiroso. Nunca mais saí de lá.
Paramos em um estacionamento, minha mãe saiu do carro e meu pai ficou comigo, no outro dia me contaram que meu avô era uma estrelinha. E até hoje converso com ele depois de escolher a estrela mais linda.
Me emocionei em um Natal em que havia pedido uma moto. Ganhei a moto e uma boneca que se mexia e chorava. Eu disse ao meu pai que o olho dela estava escorregando.
Meu primo mais novo enfiava a unha no meu rosto todo domingo, que era quando a gente se encontrava, e eu chorava muito até o dia que minha avó disse para machucar ele também. Até hoje não consigo.
Em um aniversário com a família reunida, dediquei o primeiro pedaço de bolo ao meu irmão, que nunca conviveu comigo e fez muita falta. Tempos depois ele me disse que ele não era quem eu pensava. Outros tempos depois descobri que não era mesmo. Nem se ele se esforçasse muito conseguiria ser um herói.
Minha mãe sentiu vergonha de mim quando ela e meu pai foram me buscar na minha avó paterna e de tão feliz de vê-los, saí na rua descalça, com o cabelo pro alto e o pente preso.
Eu gostava de bolinha de gude, pipa, correr descalça pela rua. Vestia bermudas enormes, bonés para trás para andar de skate. Mas todo aniversário me davam Barbies. E pior, roupas.
Meu pai adorava me levar na pracinha do Alto da Boa Vista para andar de moto, até antes de ganhar a minha. Só ganhei a minha porque disse que minhas amigas não podiam andar comigo porque seus pais diziam que era muito caro e se eu tivesse, emprestava.
Era a preferida do meu avô paterno, que todo domingo deixava biscoitos na mesa da cozinha para mim. Ele escolhia a dedo cada um. Pena que quando ele não pôde mais estar aqui, já era tarde demais para conversar com estrelas.
Andava de mãos dadas pela creche com os meninos. A gente dizia que namorava e que íamos nos casar, mas não sabíamos que existia tanta papelada para se certificar de que há amor.
Passava férias na minha avó e voltava para casa cheia de bichinhos numa caixa de fósforo, que escondia no armário com medo da minha mãe ver.
Fazia trabalhos para as bonecas e os corrigia.
Meu pai viajou para Vitória e fiquei doente. Minha mãe me levou no médico e disseram que era saudade.
Meu pai viajava e eu deixava uma foto dele embaixo do travesseiro. Quando ele voltava, dormia embaixo da cama dos meus pais, do lado dele, no chão.
Briguei com minha mãe e a perguntei ironicamente se aquilo era ser mãe. O choro dela doía os meus ouvidos e me arrependi de tanta dor no peito que senti. Foi a única vez que meu pai me bateu e foi quando descobri que minha mãe estava a sete anos sem trabalhar para cuidar de mim.
Não me recordo de nada. Certamente, ainda não existia. Tudo que aqui escrevo me foi contado.
Tudo era do mesmo tamanho e, mesmo que não lembre, parecia ser melhor.

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